quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Circo

Entre risos e palmas e assobios,
Multiplicam-se os coelhos na cartola,
Equilibram-se elefantes numa bola
E avivam-se marionetas sem fios.

Sucedem-se trapezistas esguios
E gordos palhaços sem escola,
Que ao som de uns acordes de viola
Procuram animar lugares vazios.

Na jaula é o leão que apazigua
Um triste homem vendado, que atira
Facas a uma mulher que já foi sua.

Arrisca-se uma verdade quase nua
E esconde-se, com magia, uma mentira.
O espectáculo, como a vida, continua...

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

CONTRAMÃO: Capítulo VII

Sento-me no autocarro a céu aberto, que partilho com 3 japoneses, 6 máquinas fotográficas, 4 ingleses e 8 packs de cerveja. Procuro o meu lugar e encosto-me, a contemplar a noite.

Gosto de passear pela cidade nesta altura do ano. Gosto da forma como as iluminações de Natal se confundem com as estrelas e te desenham na noite. Gosto. Ajuda-me a pensar.
Tanta coisa se passou nos últimos dias que tenho que meter a cabeça em ordem. Preciso de pensar. Pena que os flashes dos japoneses e os cânticos dos ingleses não ajudem.
Porque vêm para cá, estragar a minha cidade? - pergunto-me.
A merda das máquinas não funciona no Japão? Não há cerveja em Manchester?

Sinto a primeira gota de chuva cair-me na testa. Afinal, talvez possa haver sossego.
Rapidamente os japoneses se apressam a proteger as suas preciosas máquinas e se refugiam no andar de baixo. Os ingleses demoram alguns minutos a aperceber-se que está a chover e poucos segundos a carregar os packs de cerveja. As latas vazias, essas, ficam a fazer-me companhia...

Mantenho os olhos fechados enquanto as gotas me invadem o rosto e se fundem comigo. Sinto o seu toque gelado a percorrer-me lentamente, enquanto se me arrepiam todos os sentidos. É bom sentir-te na chuva. É bom sentir-me à chuva.
Tudo é, aqui, mais claro. As respostas desenham-se no céu em forma de luz e são-me entregues em forma de água. E eu preciso muito de respostas...

Passo a hora seguinte em absoluto silêncio, perdido, algures, a meio caminho entre o aqui e um qualquer aí.
Um chiar estridente de travões, acompanhado por um grito imperceptível, trazem-me de volta. Já parou de chover...

- Merry Christmas!! - grita um dos ingleses.
- Vai tu - respondo, delicadamente, com um sorriso.

Pego no telefone e começo a marcar o teu número...

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Estória

Sento-me no espaço vazio, por entre o amontoado de corpos inertes, perdidos em missões de resgate das almas que já não possuem. Reparo nos olhos vidrados, nos rostos cansados e envelhecidos prematuramente, pela falta de tempo em que se afogam. Os gestos rápidos, nervosos, sucedem-se na imperiosa necessidade de não parar. Pergunto-me, em silêncio, para onde vão, por que correm, de que fogem? Duvido que algum deles me soubesse responder. Eu, não sei.

O olhar foge-me agora para a janela, pela janela. Lá fora, um livro real de natureza pintado, vai desfolhando as suas alegres páginas a uma velocidade vertiginosa. Vejo a nossa casa, a casa de sonho que inventei para nós, mesmo ali, junto ao lago dos teus avós. O olhar da confirmação esbarra-se já com uma outra casa, de negro caiada, a quilómetros do local que sonhei para nós. O tempo voltou a ultrapassar-me, foi mais rápido do que eu. Já desisti de lhe fazer frente.

Concentro-me agora nas páginas da revista onde me leio. As letras vão-se agrupando em palavras difusas e, à revelia da minha vontade, desenham uma estória que não reconheço. Vou sorvendo avidamente os capítulos, na ânsia de ler o meu fim. Será que me encontro lá?

A tua voz interrompe-me antes do fim:
- Olá, estás bom?

Rasgo, apressadamente, a última página.
- Olá. Então, por aqui? Não te tinha visto - minto.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

CONTRAMÃO: Capítulo VI

As horas que conto desde que a Carmen me deixou em casa somam, sem grande surpresa minha, não mais que vinte minutos. O sono e o whisky que não tenho compelem-me a sair. A sede e a temperatura que ainda se faz sentir compelem-me a entrar no primeiro antro que me aparecer à frente. E entro.

O ambiente abafado, com um leve cheiro a mofo e um não tão leve cheiro a perfume rasca, condizem na perfeição com o nome. Sei-o, sinto-o, cheiro-o. Esqueço-me do nome.

Dirijo-me para um canto isolado do balcão e chamo o barman:
- Boa noite.
- Boa noite, que vai ser? – pergunta-me de imediato.
- Um Black Label, duplo. Para mim, só do melhor.
- Pois. Lamento, mas só temos VAT 69.
- Ou isso... pode deixar a garrafa.

Na outra ponta do balcão, o protótipo da advogada bem sucedida e mal casada sorri-me, ao mesmo tempo que brinca demoradamente com a sombrinha do cocktail. Sorrio de volta.
Duas bebidas depois e já o banco ao meu lado se encontrava ocupado:
- Detesto beber sozinha. Importa-se que lhe faça companhia? – pergunta-me.
- Muito pelo contrário – respondo, com um sorriso.
Não me preocupo em disfarçar o olhar com que a dispo. Aparenta ter 35 anos, umas pernas longas e bem torneadas e o melhor decote que a ciência moderna tem para oferecer. Talvez até seja bonita, o que, para o caso, é irrelevante.
- E então? Gosta do que vê? – pergunta-me com ar desafiador.
- Bastante. Essa roupa ficava a matar espalhada pelo chão do meu quarto...

Meia hora mais tarde, já a roupa se encontrava espalhada pelo chão de um quarto que não o meu, enquanto me envolvias com a tua boca, num mudo monólogo ritmado. Retribuo-te a gentileza, com três dedos de conversa na língua-local que usaste para se te me apresentares. Viro-te e reviro-te até que os teus passos de merengue me encubram a audição e me impeçam de entender o porquê dos gritos de “Silêncio!!” dos vizinhos.

Deixo-me subjugar pela força que julgas ter, enquanto me agarras com mãos e pernas e língua e toda tu me usas como trampolim de uma vontade reprimida. Deixo que te iludas com o domínio que julgas ter-me e abandono-me aos desejos do teu desejo. Por agora, apeteces-me assim. Por agora, deixo o prazer a teu bel-prazer.

- Chega. Agora é a minha vez – sussurro-te, enquanto te viro de costas para mim. Não te preocupes... não vai doer nada – minto-te.
Ignoro o teu olhar surpreso e forço-me em ti, invadindo todos os sentidos proibidos, enquanto me gritas um não vestido de sim, numa voz rouca de dor-prazer: “Não, aí não... não... naooooh, sim. Sim. SIM!!”

- Tens um cigarro? Os meus acabaram...

domingo, 6 de setembro de 2009

Random Thoughts

Life has the terrible habit of catching up with you, just around the corner...

Destiny is what awaits you at the end of the road you take to escape it...

Inevitability is the inevitable certainty of life having the last laugh...

Nightmares are the stuff other people's dreams are made of...

sábado, 29 de agosto de 2009

Berlinde

Brinco-te com a ponta dos dedos.
Enrolo-te repetidamente entre o polegar e o indicador. Aperto-te contra a palma da minha mão, para não te deixar cair, para não te perder, de tão preciosa que me é a ilusão da tua posse.

Procuro-me na tua esfera perfeita, onde aprisionas a mais crua das verdades. A tua. Não me encontro, não me espanto. Não há em ti lugar para nada mais que a tua chama azul-esverdeada, a par dos reflexos com que decides brindar-me enquanto insisto em polir-te com o calor húmido da minha expiração.

Sinto agora o teu peso na minha mão e equilibro-te no polegar enquanto antecipo, de olhos cerrados, a derradeira das jogadas. Imagino-te um xeque-mate em versão rolante, com direito a aplausos, foguetes e serpentinas. Tudo a que tens direito. Ou quase tudo...
Mas não, hoje não.
Hoje não me apetece atirar-te para longe, onde teimosamente te deixas ficar, à espera que eu regresse a ti.
Hoje não. Isso cansa.

Não. Estou farto deste jogo.
Guardo-te no meu bolso direito, juntamente com os outros berlindes, a pastilha elástica semi-usada, os dois clipes e os cromos repetidos.

Afinal, acho que vou jogar às cartas...

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

CONTRAMÃO: Capítulo V

- Então, Silva? Boa noite também para ti – cumprimentei, ironicamente.
- É Tenente Marques Silva, para ti – respondeu-me, entre dentes.
- Tenente? Muito bem. Vejo que continuas a lamber botas... ou agora também já lambes outras coisas??
- Seu filho da...
Saltei para o lado mesmo a tempo de evitar a mão que se me dirigia e que, desconfio, não me vinha cumprimentar. Conseguiu arrancar-me o cigarro da boca. O sorriso, esse, já ninguém mo arrancava. Não fora a pronta intervenção da Carmen e ainda me teria divertido mais um bocado.

Eu e o Silva já nos conhecíamos há alguns anos, dos meus tempos na PJ, embora não se pudesse dizer propriamente que fossemos amigos. Não sei se pelos casos que ele perdeu para mim, se pelo facto de ter desconfiado que eu andava a comer a mulher dele, o certo é que o Silva não ia com a minha cara. E, confesso, isso nem me chateava por aí além. Para ser honesto, até me dava um certo gozo. Nesse aspecto, ele era muito parecido com a mulher.

- O que é que estás aqui a fazer? – perguntou bruscamente o Silva.
- Se queres que te diga, nem eu sei muito bem – respondi, olhando para Carmen.
Esta pediu-me para aguardar um minuto e entrou em casa com o Silva. Não faço a mínima ideia do que ela lhe terá dito mas, dois minutos depois, o Silva era o meu novo melhor amigo.
E eu, que até gosto de fazer amigos, resolvi alinhar no jogo.

- Xavi está aquí para hacerme un favor, ayudándome a entender lo que pasó e para defender a mis chicas. Le vas a ayudar con todo lo que necesite, verdad? – disse Carmen, dirigindo-se ao Silva.
- Claro. Será um prazer – respondeu este, sem esconder o tom irónico.

Pedi-lhe que me levasse ao local onde o corpo de Miriam fora encontrado. Confesso que contava com um choque maior.
A cena dir-se-ia de tudo menos de um homicídio. O corpo encontrava-se deitado no chão, tranquilo, pacífico, quase como se estivesse a dormir. Não soubera eu que Miriam estava morte e quase esperava que ela se levantasse a qualquer momento, rindo-se da piada que acabara de nos pregar. Ainda assim, algo me diz que dificilmente ela se voltaria a levantar...

Comecei então a observar o corpo com mais atenção. Miriam estava deitada de barriga para cima, de pernas perfeitamente esticadas e braços cruzados em cima do peito. Por baixo destes, seguros por ambas as mãos, um livro e um malmequer. Não há sinais visíveis de violência. Não há sangue, hematomas, arranhões, nada. De facto, agora que reparo bem, não há sequer um cabelo fora do sítio. No chão, entre o corpo e o sofá, algumas pétalas arrancadas ao malmequer.

- E então? Que sabemos até agora? – pergunto ao Silva.
- Pouco. Muito pouco. O corpo foi encontrado esta manhã pela empregada de limpeza, que tem uma cópia da chave e vinha limpar o apartamento. Já a interrogamos e ela afirma não saber de nada. Aparentemente, vem limpar o apartamento duas vezes por semana, às segundas e quintas de manhã. A causa da morte está ainda por determinar, embora não haja sinais visíveis de violência. Pelo menos sabemos que não foi morta a tiro – disse o Silva, soltando uma gargalhada.

Perante a nossa ausência de reacção, continuou:
- O médico legista aponta para que a morte tenha ocorrido entre doze a vinte e quatro horas atrás. Já falámos com alguns dos vizinhos, que afirmam não ter visto ou ouvido nada fora do comum.
- E o livro? – perguntei.
- Ia mesmo agora tratar disso.

Observei o Silva enquanto este pegava no livro e o desfolhava cuidadosamente. Tratava-se de um Guia Viagem de Londres, banalíssimo, daqueles que vêm de oferta com a Visão. Não havia qualquer anotação ou inscrição no mesmo. Parecia tratar-se de um exemplar comum, saído directamente das bancas.

- Que haces? No vas a destruir las huellas dactilares y el ADN? – pregunta Carmen.
Não consegui deixar de olhar para o Silva e sorrir, enquanto respondia:
- Andas a ver muito CSI, Carmen. Estamos em Portugal. Mesmo que conseguíssemos recolher as impressões digitais ou o ADN, não temos bases de dados com que as comparar. Tanto podiam ser minhas, como tuas, como da própria Miriam, que nem tínhamos forma de as distinguir. Com um bocado de sorte, arranjam-se uns cães, como no caso Maddie...
- Entonces y ahora?
- Agora vocês vão deixar-me trabalhar em paz, que eu tenho mais que fazer. A visita guiada acabou. Está na hora de voltarem para a escolinha – disse o Silva, apontando para a porta.
- Vamos, Carmen. Até que seja feita a autópsia, não podemos adiantar grande coisa – disse.

Ao sair de casa volto-me para trás e digo ainda:
- Ah, Silva, só mais uma coisa...
- Sim?
- Manda cumprimentos meus à tua mulher...

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Castelo de Cartas

Rei de Paus. Mesmo aqui, encostado ao Valete de Espadas, ao lado esquerdo da minha alma.
Com a mão precisa, pego agora no Duque de Ouros, tripla parte da Sena a que se encosta, que amontoo nesta margem ao Sul de mim.
Perdi já a conta aos 204 baralhos que investi neste Castelo e aos dias que se empilham em horas de paciências fingidas.

Empunho o Terno de Espadas no preciso momento em que irrompes pela sala dentro e bates a porta atrás de ti. Toda tu, impetuosidade. Toda tu, urgência vestida de vento, premência avassaladora, tornado, ciclone, turbilhão de ti.

Serpenteias por entre as cartas que te caem aos pés e sorris-te, indiferente ao sorriso que te escondo amargo, oculto na doçura do meu olhar.
As cartas, essas, caem ainda.

Engraçado. Reparo agora que a Dama de Copas se mantém de pé, debruçada sobre o seu Joker.
É melhor apagar a luz. Não queremos arriscar acordá-los...

segunda-feira, 27 de julho de 2009

CONTRAMÃO: Capítulo IV

Não teriam passado mais de quinze minutos e já o Jaguar de Carmen parava à minha porta. O calor, esse, não parecia sequer abrandar.

O percurso de vinte minutos até à casa de Miriam foi percorrido em pouco mais de dez. Pelo caminho, a reboque do mais elementar desrespeito pelas regras de trânsito, ficaram dois espelhos, três vermelhos, uma bicicleta e um número indeterminado de buzinadelas e impropérios, dirigidos alternadamente à nossa pessoa e à das senhoras nossas mães. Indiferente a tudo isso, Carmen dirigia como se não houvesse amanhã e, a meu ver, esteve por duas ou três vezes a escassos milímetros de o conseguir.

Mal parámos em frente ao número dezassete da Rua das Camélias e ainda antes de recuperar grande parte do meu sangue frio, ouvi a Carmen:
- Recoge tus huevos, Xavi. Quizás aún vas a necesitar de ellos.
Sorri-lhe com evidente desdém. Não, definitivamente, as mulheres não deviam conduzir.

De construção recente e aparência moderna, o edifício situava-se numa zona calma da cidade, em frente a um pequeno parque, onde o riso irritante das crianças coabitava alegremente com o ruído abafado da água e das folhas que se lhes varriam do caminho.

A imponente presença policial, tão estoicamente enraizada nos filmes, era aqui representada por uma única viatura da PSP, um Fiat Tempra a dever um bom par de anos ao abate, ao qual se encostava um gordo agente de bigode, que segurava o boné com a mão contrária àquela com que retirava a cera dos ouvidos.

O agente nem sequer fez tenções de se mexer quando passámos por ele e entrámos no prédio. Subimos a pé os três lances de escadas que nos separavam do nosso objectivo. Por indicação de Carmen, bati à porta que ostentava a letra ‘F’.
Um homem alto e corpulento abriu a porta, com uma violência tal que quase a arrancava das dobradiças.
- Tu? – gritou.

Merda.
Eu sabia que ia ser uma noite comprida.

domingo, 12 de julho de 2009

CONTRAMÃO: Capítulo III

Uma gota de suor cai no telemóvel quando me inclino para o ligar à corrente. Detesto calor. Preparo-me para tomar um banho, no preciso momento em que os acordes do Verão Azul se voltam a fazer ouvir. Se a música não fosse tão irritante deixava tocar.
- Boa tarde, fala Xavier.
- Hola, Xavi. Que tal?
Reconheço imediatamente a voz e a pronúncia.
- Carmen? Não conhecia este número...
- Es nuevo. Tuve que cambiar. Tu sabes como es... “uessos del ofício”…
- E então? Que me contas?
- Xavi, necesito que me hagas un gran favor...
- Sim, que se passa?
- Te acuerdas de Miriam?
Miriam. Morena, linda, um corpo de perder a cabeça...
- Vagamente – respondo.
- Seguro que te acuerdas. Pues la han encontrado hoy, en su apartamiento… muerta!
- Morta?? Como? Que… que aconteceu? – pergunto, sem conseguir disfarçar a surpresa.
- No lo sé. La policía cree que la han matado.
- Assassinada? De certeza? Não pode ser. Como??
- Xavi, no sé que más hacer. Las chicas están asustadas. Por favor, ayuda-me.
- Não posso, Carmen. É um assunto de polícia. Além do mais, há muito que já me deixei disso. E tu sabes bem porquê. Desculpa.
- Por favor, Xavi. Yo y las chicas nos quedaríamos más tranquilas. Por favor.
- E o que é que poderia fazer? Não dá. Não dá mesmo.
- Xavi, necesito recordar-te que me debes bien más que eso? Estás en tu casa? Te voy a buscar dentro de quince minutos, vale?
- Mas... – ainda balbuciei para o silêncio do outro lado da linha.

Merda.
Despejo o resto da garrafa de Black Label num copo, que bebo de um só trago. Vai ser uma noite comprida.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

CONTRAMÃO: Capítulo II

Quase vinte e três horas a acumular calor só podia dar nisto: uma das noites mais quentes do ano. O termómetro de rua marcava agora uns modestos vinte e oito graus. Nada que se comparasse com os trinta e seis de horas antes. À sombra dos candeeiros semi-ligados caminhavam desconhecidos a esforçarem-se por não o serem.

Do alto da sua árvore, com plena vista sobre o terceiro andar do número dezassete, um mocho observava a cena.
Uma mulher, na casa dos vinte, alta e atraente, abria a porta a um cavalheiro mais velho. Ultrapassada a cerimónia do beijo e a aparente normalidade em ser-se recebido por uma mulher em lingerie, o casal levou a conversa para o sofá. E a conversa deve ter sido bem agradável, pois ao fim de alguns minutos eram já as línguas que se falavam, os corpos que se tocavam e as vontades que se enlaçavam.

Meia hora mais tarde, adivinham-se juras de amor nas palavras levemente sussurradas ao ouvido e nos beijos que agora vestem o pescoço. Mesmo à distância, parece conseguir ouvir-se um “para sempre”.

Não era ainda meia-noite e já o corpo da mulher repousava, inerte, no chão da sala. Não era ainda meia-noite e já a porta do apartamento se fechava. Era já meia-noite e o homem caminhava, anónimo, por entre os desconhecidos que se imitavam.
Meia-noite e dois. O termómetro marcava ainda vinte e oito graus.

terça-feira, 30 de junho de 2009

CONTRAMÃO: Capítulo I

Acordo com uma gota de suor que me arde nos olhos ainda fechados. Sinto já o calor insuportável que não me deixa respirar e não me devia ter deixado dormir. Os martelos pneumáticos na minha cabeça e o hálito a whisky aconselham-me a manter os olhos fechados. Diz-me a experiência que, por vezes, o despertar que se inicia não é forçosamente a continuação do sonho que se acaba.

Abro lentamente os olhos para apenas me deixar cegar pela claridade que invade o quarto. Assim que os meus olhos se adaptam à luz, começo a olhar em volta. Conforme invariavelmente acontece, o meu olhar foge para o vulto deitado a meu lado. “Nada mal”, penso, “Ontem devo ter bebido menos que o costume”.

O corpo, despojado de roupas e de toda a decência, convida-me à continuação de algo que não me recordo de ter iniciado. A orquestra na minha cabeça recusa amavelmente o convite. Não me consigo recordar do seu nome. Confesso, aliás, que nem me interessa. Os nomes são prisões. E eu não gosto de me sentir preso. Já gostei.

O quarto, que reconheço não ser o meu, em nada me é familiar. Talvez, apenas, no calor abafado que me sufoca e na minha roupa espalhada pelo chão. Ainda assim “podia ter sido bem pior”, penso. Recolho parte da roupa que encontro e começo a vestir-me. Os boxers e a outra meia vão ficar de recordação.

Olho-me demoradamente ao espelho. Não porque me admire, mas porque tudo se me abranda ao acordar. Com um metro e oitenta, olhos claros e tez morena, podia até ser considerado bonito, não foram as cicatrizes que me enfeitam o rosto e as marcas indeléveis de cinquenta anos vividos em pouco mais de trinta. O porte, esse, que os incautos crêem de ginásio, é resultado de seis longos anos na construção civil.
Visto-me ao ritmo do despertar, demoradamente.

Não me despeço de ti. Não saberia o que te dizer. Não saberia mentir-te e duvido que gostasses de ouvir a verdade de um “Até sempre. Foste um bom prazer descartável!”. Não tenho, aliás, sequer a certeza que o tenhas sido.

Saio e fecho a porta atrás de mim sem sequer olhar para trás. Aprendi a não olhar para trás. À minha frente, a porta que me leva a uma rua que, mais uma vez, desconheço. Olho em volta à procura do meu carro, que não encontro em lado algum. Talvez seja melhor assim. Conduzir sem carta e sem seguro pode ser perigoso.

Penso em chamar um Táxi ao mesmo tempo que ouço a inconfundível melodia do meu telemóvel. “Verão Azul... tenho que mudar isto!”. São 16:22h e o número desconhecido não dá sinais de querer desistir. Atendo:
- Boa tarde, fala Xavier – digo.
O silêncio que se seguiu fez-me pensar que devia ter carregado o telemóvel...

CONTRAMÃO: Prefácio

'Contramão' não é um livro, 'Contramão' não é uma história, 'Contramão' não é um conto.
É, se de alguma forma pode ser definido, uma vulgar aproximação a um mini-conto de livre distribuição. No limite e, em última análise, um esforço desesperado do seu autor em deixar a sua marca na blogosfera. Pensando bem, talvez não seja sequer isto. É, ponto.

O enredo, demasiado simples para ser explicado, demasiado complexo para ser colocado em palavras, está ainda por definir. É uma história viva, em permanente evolução. Certo, porém, terá pelo menos um personagem. Certo, espero, terá um início. Tudo o resto ostenta, orgulhosamente, o estandarte da incerteza.

O título não nasce de uma ideia brilhante, mas sim de uma brilhante ausência de ideias. É, na sua forma mais pura, fruto do acaso. A sua ligação com o enredo, ainda por definir, espera-se venha a ser conseguida. A não o ser, também não se perde nada. É 'Contramão', podia ter sido outro desastre qualquer.

Os capítulos serão publicados pela mais rigorosa ordem numérica e cronológica. E mais não posso adiantar. Não almejo a presunção de vos dizer “Espero que gostem”. Nem sequer me atrevo a sugerir que o leiam. Digo-vos apenas e, em boa verdade:
“Leiam-no, única e exclusivamente... se não tiverem nada melhor para fazer!”

Miguel Lourenço.

terça-feira, 23 de junho de 2009

PAI

Faz hoje dezanove anos que te perdi. Conto hoje dezanove anos em que vivo sem parte de mim.

Vives, ainda, na minha memória. Marcas, ainda, pelo teu exemplo. Guio-me, ainda, pelos teus passos.
A tua mão forte continua a amparar-me as quedas e os teus ensinamentos são ainda presentes no meu dia-a-dia. É ainda o teu conselho que imagino quando tomo uma decisão complicada. São teus os valores que procuro passar ao meu filho.

As palavras que deixei por dizer e as outras que nunca ouvi marcam, a par com os abraços que não mais te darei, o ritmo de uma permanente saudade.
Sei-te longe. Quero-te perto.

E esperam que acredite em Deus???
Acredito-me em ti, PAI.
Vivo por ti!
Sou-te!

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Be Still

Be still oh night that awakens my dreams,
Be still oh night that summons my ghosts.
Be still oh deamon and veil for my sleep,
Be still oh angel and guard me 'till day.

Be still oh night, my night.
For thee are a restless beast,
For I am a troubled soul.

domingo, 21 de junho de 2009

Verão

Sopra agora uma brisa fresca e o sol que me queimou a pele teima em já não me aquecer.
Aos poucos, sem que eu notasse, a praia ficou deserta.

Sozinho, ouço o canto do mar que me chama para ti e o silêncio da areia que me convida a ficar. Levanto-me e pego no casaco que desejava ter trazido. Fez-se uma noite fria.

Caminho em direcção às fogueiras que descortino no horizonte. Mais perto, ouço já as vozes desafinadas de um grupo de adolescentes que, ao ritmo do crepitar da fogueira, tentam disfarçar o real motivo que os trouxe ali. Evito-os.

Um pouco mais à frente, um casal troca longos beijos enamorados e joga Tetris com o corpo. Nem dão pela minha presença. Penso na areia e sorrio.

Continuo, até encontrar o meu espaço, um pedaço de praia só meu.
Será aqui? Parece-me que sim, penso, antes de me sobressaltar com o ladrar de um cão de água que corre, alegremente, à frente dos donos.
Parece-me que não. Desisto. Vou para casa.

Chegou o Verão, praias cheias, filas intermináveis, pic-nics e condutores de Domingo.

Chegou o Verão... quando volta o meu Inverno?

sábado, 20 de junho de 2009

Rótulos

Dispo-me dos rótulos com que me vestiste e caminho de encontro a mim. Sorrio-me, de longe. Quase não me reconheço. Ainda bem.

A noite serve-se agora numa bandeja, por entre os Martinis e as azeitonas. Um doce cheiro a jasmim recorda-me que me esqueci de algo. Talvez mais um gole me avive a memória. Ou talvez não, que interessa?

Observo, nada discretamente, o jogo de sombras que pintam agora as paredes, onde os graffitis se escondem. O cheiro a erva queimada invade-me as narinas e disputa a minha atenção com as solicitações que escuto em pano de fundo, não tão fundo quanto gostaria: "Quanto levas?"
O que me recorda: tenho que mudar de casa. A ver se amanhã me lembro...

Umas horas mais tarde e os sons parecem apagar-se, ali, naquela esquina, mesmo junto ao passeio. O vazio é agora preenchido pelo riso das crianças, atravancado pelo choro dos pais. Irrita-me sempre esta hora, em que o sol teima em ofuscar-me. Ainda sem te conseguir ver, ouço já os teus passos decididos, que se aproximam.

"Outra vez à janela? Que mania... és cá um coscuvilheiro!" - dizes-me.
Levanto-me e sorrio-te. Aproximo-me para te beijar.
E beijo-te, precisamente ao mesmo tempo que te cravo a faca da cozinha em cheio no abdómen.

Eu avisei-te que não gostava de rótulos!
Agora, por favor, sai-me da frente da janela...

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Estupidez

Pergunta do dia: "Até que ponto vai a tua estupidez?"
Resposta: FUBAR... just like me...

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Tempo

O tempo mede-se pelos momentos em que a eternidade se resume a um segundo...

Espelho

Recordo-me vagamente de ver o meu reflexo no espelho, antes de o dia se apagar.

Recordo-me dos contornos difusos do meu rosto, distorcidos pela luz que me ilumina as costas. Recordo, de olhar turvo, como o pensamento se lhe seguiu e a noite se desmultiplicou em explicações inverosímeis e desculpas desnecessárias. Era tarde. Bastava.

Recordo, na crueldade implacável do espelho, de ver o tempo mirrar em mim e um nada gigantesco a crescer, na imagem estranha de um reflexo que não distingo. Recordo ainda a sombra das mãos que me acariciam o cabelo e o eco das palavras que me embalam em surdina. Recordo-te vagamente.

Quero responder-te, mas o teu reflexo foge e vai ganhando vida, à medida que os meus olhos se fecham em redor do meu silêncio. Ainda não é hoje que te respondo. Ainda não é hoje que o cansaço se dá por vencido. Hoje, simplesmente, adormeço.

Espero, amanhã, ver no meu o teu reflexo...

Irritação

Irrita-me esta irritação que me irrita o ser.

Irritam-me os sorrisos falsos, as falinhas mansas e os olhares de soslaio. Irritam-me os comentários pelas costas, as frases veladas e as meias palavras. Irritam-me as faltas de educação, as faltas ao respeito e até as faltas de humor.

Irrita-me andar irritado!

E irritas-me quando consegues, mesmo à distância, com uma palavra, um sorriso, sem avisar... arruinar a minha doce irritação.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Noite

A noite esconde-se na sua própria sombra e apanha-me de surpresa.
Segreda-me ao ouvido, com a doce ousadia dos amantes, as razões com que sabe convencer-me. As suas razões, não tão raras vezes as nossas razões.
Fala-me do tempo, do silêncio e do espaço que parece ganhar nova vida. À noite, tudo tem outro sabor. À noite, tudo me sabe a mim.

Voltaste? - pergunto-lhe.
Vem, envolve-me com o teu manto negro. Cobre-me. Abriga-me. Protege-me.

Vem... hoje faço-te companhia!

sábado, 23 de maio de 2009

Speeding

A word to the wise:

If you like driving, you want to keep your Drivers License and you hate throwing 300 EUR away... don’t get caught going 187 km/h on a 100 km/h limit road...

It’s not that funny. Just take my word for it...

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Desenho

Atropelam-se-me, na pele, os pensamentos,
Amontoam-se-me, nos olhos, as verdades
E o tempo, na eternidade dos momentos,
Insiste em me mostrar cumplicidades.

Irrompo pelas encruzilhadas do que sou,
E perco-me, sem sentidos, sem sentido,
Nas margens de um rio que amanhã secou
E hoje, em seu leito, me traz escondido.

Deixo-me vencer por um imenso cansaço,
Por esta fome desvairada de querer,
Pela ausência que encontro no meu espaço.

E à noite, quando me deito, já sem me ver,
Reuno toda a vontade num só traço
E, em mim, desenho a vida que hei-de viver!...


Desenho vales e rios em tons de verde,
De azul, o céu e o mar que me espera.
Desenho as folhas que o Outono perde
E as flores com que lhe ganha a Primavera.

Pinto o cheiro de rosas no Verão
E, no céu, um candeeiro de luar.
Pinto o mundo com o branco de um nevão
e de Inverno enfeito todo o ar.

Pinto a minha vida de mil cores,
Dou-lhe cheiros, gestos e sabores,
Dou-lhe o tempo isolado do seu fim.

No final, ao contemplar o meu desenho,
Percebo que no meu, o teu engenho,
Me pintou uma vida igual a mim!...

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Ribalta

Trazem-me as luzes da ribalta
Memórias de outros carnavais,
Em peças de actos desiguais
E sons apagados de uma pauta.

No palco, a vida roda e salta
E dança, em figuras colossais,
Os sonhos, que lhe pintam os demais
E à vida, ela própria, fazem falta.

No camarim atropelam-se os actores,
Veste-se a nudez em seu redor
E despem-se, de pétalas, as flores.

Trocam-se os aplausos pela dor,
O cansaço perde-se em odores
E a vida, mesmo ali... no corredor...

domingo, 26 de abril de 2009

Xadrez

- Vem, senta-te comigo, Teresa.
- Porquê? - perguntas, curiosa.
- Já vês. Anda, confia em mim - respondo-te.

É este o nosso campo de batalha.
O tabuleiro está montado, as peças alinhadas na perfeição.
Sorrio-te.

Começo por te apresentar as peças. Permito que saboreies a sua cor, no preto e branco de que tanto gostas. Insisto para que lhes pegues e lhes dês vida com o teu toque.
Observo-te, deliciado, enquanto estudas cada peça como se a tua vida dependesse disso. Como adivinhaste?

Começo a explicar-te regras e movimentos, numa estranha coreografia de vontades reprimidas. Vejo-te franzir o sobrolho quando te explico ser o Rei a peça mais importante do jogo - sem ele não há jogo. Vejo-te sorrir quando te confesso, a contragosto, que a Rainha é a peça mais forte do jogo - incomparavelmente mais forte do que o Rei a que serve. Explico-te como me podes comer 'en passant', como me podes saltar com os teus cavalos e prender com as tuas torres.

Ouves atentamente tudo o que tenho para te dizer e sondas tudo o que não te digo, com esses teus olhos, guardiões de todos os segredos do Universo.

- Gosto que me ensines - dizes, numa voz abafada, ao mesmo tempo que me sopras o beijo que não me dás.
- Sim? Ainda bem... Começamos?

e2-e4: Abro com peão de Rei. Abertura clássica.
e7-e5: Imitas-me, à falta de melhor ideia.
Cb1-a3: Saio com um dos cavalos. Sempre gostei dos cavalos.
Bf8-c5: Olhas para a televisão enquanto jogas para C5. Sempre adoraste esse anúncio da Citroën.
Ca3-b5: Avanço com o meu cavalo. Já te disse o quanto gosto dos cavalos?
Dd8-f6: Já queres mexer a Rainha? Tão cedo, no início do jogo? Tu é que sabes. Sorrio.
Cg1-e2: Continuo a abrir os cavalos. É sempre uma boa estratégia.
Df6xf2++: Sorris-me...

sábado, 25 de abril de 2009

Lições de Vida

"Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida"

Fernando Pessoa
in 'Livro do Desassossego'

domingo, 19 de abril de 2009

Olhos

Depois de tanto corta e cose e remenda e corta e volta a coser, já vejo o mundo com outros olhos.

Pena que o continuo a ver desfocado...
Será que não é dos meus olhos?!?

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Regras

Estou farto das tuas regras!

Estou farto das regras de conduta, regras de etiqueta, regras de educação, regras de trânsito, regras de mercado, regras do jogo, regras gramaticais, regras ortográficas, regras de bom senso, regras, regras...
Estou farto de regras. Ponto.

As regras foram criadas para serem quebradas e todos sabemos que há um gostinho especial em contorná-las. E eu, por regra, orgulho-me de ser a excepção à regra. Esta, é a excepção que confirma a regra.

Hoje acordei com uma vontade desregrada de não me regrar.
Acordei com vontade de não baixar a tampa da sanita, com vontade de não te desejar "Bom Dia" e não te agradecer por me passares o sal.
Hoje passo vermelhos, sentidos proibidos e estaciono-me em ti, desrespeitando todos os sinais.
Hoje escrevo-te em letras maiúsculas, sem pontuação e sem tracinho se. Hoje não há ses. Hoje não me apetece parar para esconder a subtil indiferença entre um "toca-mos" e um "tocamos".
Hoje não é dia de estender o dedo mindinho ao beber o chá, perdão, a infusão. Hoje é dia de te estender um outro dedo, mal me ameaças com o teu olhar reprovador.
Hoje não me apetece recuar duas casas, só porque as regras assim o ditam. Apetece-me voltar a atirar os dados e exclamar, vestindo o meu melhor sorriso irónico: "Que sorte, um duplo de seis" - enquanto recolho descaradamente os dados que, em conjunto, somam três.

Hoje é dia de dizer asneiras, desligar telefones na cara e cuspir para o chão. É dia de faltar ao respeito, buzinar sem motivo e mandar calar a chata da vizinha. É dia de levar a faca à boca, comer com as mãos e mastigar de boca aberta.
Hoje não é dia para agradecer ou pedir desculpa.

Ainda assim, não é um dia sem regras.
É, simplesmente, um dia com novas regras. Desta feita, as minhas regras.
E, em boa verdade, só há uma regra: Sou eu quem dita as regras e as regras podem ser alteradas a qualquer momento. Simples, não?

It's a whole new game.
Now I make the rules as I go along... and I'm loving every second of it!

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Caos

Serpenteio naturalmente por entre o caos que me rodeia. Nem reparo. Já não o estranho, já não me incomoda. Acho, aliás, que aprendi a gostar dele...

Gosto do som dos jornais que se rasgam sob os meus pés, da visão dos livros que se amontoam em massas disformes de nada. Gosto de tropeçar em CDs e afastar com as mãos a roupa interior pendurada no candeeiro. Gosto.

Todos os dias descubro algo novo. Ontem foi aquele álbum de fotografias em que eu, de enorme bigode e calças à boca-de-sino em padrão xadrez, parecia querer dominar o mundo. Que ridículo que eu era. E tu? Com aquele cabelo armado, dentes tortos e óculos de fundo de garrafa? Já quase não te recordava, pré-metamorfose.

Meu Deus... lembro-me vagamente dos dias em que ainda havia lugar para me sentar no sofá. O espaço foi agora gentilmente cedido a hordas de revistas amareladas pelo sol, que convivem alegremente com pratos e copos sujos, toalhas, lençóis, sapatos rotos e até a minha velha máquina de escrever. Estou bem melhor assim. Era tão desconfortável, o sofá.

Esta é a parte complicada. Especialmente de noite, como agora. A lâmpada fundida, que jurei substituir há dois anos, nega-me a visão e é com frequência que derrubo, com grande estrondo, as recordações que aqui amontoo. Por muito cuidado que tenha, há sempre um vaso morto que cai e espalha a sua terra pela alcatifa bolorenta. Invariavelmente, como de costume, não me apetece limpar. "Talvez amanhã" - penso. Recordo-me de ter pensado isto ontem.

O quarto parece um cenário de guerra. A roupa suja esconde os defeitos do chão, que agora só se imagina. Os pedaços despidos, por entre os papéis amarrotados e as camisas usadas, são as trincheiras onde me escondo. As latas vazias de Coca-Cola, as minhas armas de arremesso.

A um canto, imaculada, impecavelmente limpa, a minha cama, o meu quartel-general. Em cima da mesinha de cabeceira, aquele livro, filho do caos, em que ontem tropecei e há muito sonhava ler.

Sim, definitivamente... gosto!

terça-feira, 7 de abril de 2009

Dias Maus

A vida é demasiado curta para ser desperdiçada com dias maus...

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Navegar

O Sol, pintado em tons de toranja azulado, deita-se agora na linha do horizonte.
Anoitece lentamente, ao ritmo compassado do meu tempo, sem tempo. O azul escuro domina agora os meus olhos, que tentam, em vão, contar as estrelas que rasgam o céu. Estão aqui tão perto que acredito conseguir agarrá-las e escalar, uma a uma, sem tempo, até alcançar a Lua onde me escondo.

Hoje é dia de um só sentido. Hoje é dia de visão.
O pôr-do-sol mais bonito que alguma vez vi foi rendido por um manto de estrelas fantástico, que em nada lhe inveja a beleza. A água, onde se reflecte o meu mundo, é límpida e clara como o céu que nela se espelha. Mergulho uma mão e admiro os círculos perfeitos que nascem do meu contacto.
Todos os dias deviam ser assim. Serenos. Perfeitos. Só meus.

Levanto a âncora que me prende, solto as amarras e deixo-me ir.
Desligo o GPS. Hoje é dia de me guiar pelas estrelas. É dia de me deixar guiar. É dia de me deixar ir à deriva. É dia de saborear a viagem. É dia de largar o meu porto.

Hoje é dia de navegar sem destino.
Amanhã, se regressar, conto-vos como foi...

sábado, 21 de março de 2009

Férias

Parto.

Troco palavras por silêncios e fujo de encontro ao futuro, que me espera já em tempos passados.
Deixo para trás o excesso de bagagem e carrego apenas o essencial. A mala não é grande e, ainda assim, vai quase vazia. De sobra o espaço para as memórias de ocasião e os momentos ocasionais.

Espero regressar com a mala cheia e, ainda assim, sem nada a declarar...

sexta-feira, 20 de março de 2009

Diogo

És a doce inocência de criança. És luz, és sol, és esperança. És desenho por colorir.
És traço, és papel, és caneta. És paixão com toques de ternura. És vida por descobrir.
És tanto, que não cabes em palavras, tão grande que não ouso resumir.

És amor,
És sonho,
És vida,
És tudo!

És a doce razão do meu viver...
O melhor FILHO que algum PAI podia querer!!

É tua, para sempre, a minha Vida.
É teu, para sempre, o meu Amor.

AMO-TE DIOGO!!

quinta-feira, 19 de março de 2009

18 Março

18 de Março.

Como poderia não pensar em ti?
És e serás sempre parte integrante de mim...

terça-feira, 17 de março de 2009

Coma

Acordo, lentamente.

Os meus olhos resistem à luz que os invade e os músculos parecem não querer responder. A boca, seca, procura o ar que a envolve, como se fosse esta a sua última inspiração.
Arranco os tubos que me rasgam o nariz e olho à minha volta. Tudo é paz. Tudo é silêncio. Uma calma anormalmente tranquila reina no ar.

A custo, abandono a cama articulada e dirijo-me para a janela.
Está um sol radiante lá fora. O céu aberto, sem nuvens, é o palco perfeito para a dança dos pássaros, com o seu doce chilrar.
As crianças brincam na relva e, entre elas, o vulto irrequieto do meu filho. Como cresceu...
Observo-o por breves momentos que me parecem horas. Estudo cada movimento, decoro cada gesto, absorvo cada segundo. E, num instante, naquela fracção de tempo em que o mundo parou, os nossos olhares encontram-se.
Já de olhos banhados em lágrimas, vejo-o correr em direcção à janela, de sorriso rasgado estampado no rosto. O meu sorriso...

Iço-o pela janela, com uma força que não sabia ter e dou por mim num mundo à parte. Surgidos não sei bem de onde, amigos e família envolvem-me num abraço que me sufoca de carinho. As flores ocupam agora todo o quarto e adivinham-se as perguntas no ar:

"Então, como estás?"
"O que sentiste?"

Engraçado que, até aí, não me tinha dado conta que tinha acordado...

Sorrio, docemente, enquanto respondo:
"Nem tudo é mau. Passa-se o dia inteiro a sonhar..."

Sorrio ainda mais, quando concluo em silêncio:
"Hoje, acordei... e mantenho os sonhos vivos em mim!"

Pesadelo

Caminho, perigosamente, no limite do precipício.
O meu medo de cair suplantado apenas pela vontade de mergulhar...

O Sol, que aqui me trouxe, foi já rendido pela Lua, que agora ilumina os meus passos.
Uma constelação de mil estrelas parece querer indicar-me o caminho. Fecho os olhos e procuro seguir o estranho mapa, ligar os pontos de luz. Perco-me.
Sem referências é sempre mais difícil encontrar o caminho...

Ao meu redor, o mundo tornou-se mudo. O silêncio que impera em mim, ecoa nas paredes da minha alma e revolta-se num grito surdo. Ouço, apenas, a ausência de som dos meus passos.

Imóvel, procuro equilibrar-me na linha ténue que limita a minha sanidade.
Estendo a mão para tocar o nada que sei lá estar. Agarro-me à corda imaginária que ainda prende o meu mundo e deixo-me balançar sobre o abismo.

Neste momento, abro os olhos e enfrento o vazio.
O medo é agora a corda que me mantém suspenso.
Estranhamente, não tenho medo a que me agarrar.

Volto a cerrar os olhos, largo-te... e deixo-me ir.

Felizmente, sei que é só um pesadelo.
Um doce, previsível e reconfortante pesadelo.

Neste, como em todos os outros... acordo sempre antes de tocar o chão!

Embriaguez

- Chegámos.
O som mal se distingue, longínquo, distante.
- Psst, chegámos.
Agora mais perto, a voz não me é familiar. Começo lentamente a despertar. Abro os olhos, apenas para os voltar a fechar em poucos segundos.
- Psst. Desculpe. Chegámos!
A voz é agora mais forte. O tom, levemente irritado, sugere-me que este é um bom momento para acordar.
- Quanto é? - pergunto.
- Onze e oitenta - alguém me responde.
- Obrigado. Pode ficar assim.

Saio do taxi para a noite gélida que me sufoca e olho à minha volta.
Era suposto não reconhecer o local, mas tudo me parece estranhamente familar. As luzes, os odores, as ruas, os sinais. Tudo me recorda de ti.
Procuro, em vão, os meus cigarros. Sorrio. Quase me esquecia que deixei de fumar. "Fumar mata", uma frase tão simples, que convence. Convenceu-me.

Arrisco. Começo a caminhar na tua direcção sem saber onde estás, sem saber como ou por onde ir. Deixo-me guiar pelo instinto, na esperança que as memórias destas ruas que nunca pisei, me vão mostrando o caminho.
Está escuro. Nada vejo, para além das marcas dos meus próprios passos, que vou deixando e decorando, não vá eu precisar de voltar.

É este o momento em que anseio que apareças, a galope no teu cavalo, tal princesa, tal personagem de conto de fadas. Invariavelmente, nesta noite, como em todas as anteriores, não apareces.
E o meu conto de fadas esfuma-se em tons de realidade, no preciso momento em que que gritam, do carro que quase me atropela: "Sai do meio da estrada, ó palhaço!!"

E saio. Cambaleio a subir o passeio, tropeço a subir as escadas e acabo por cair à entrada de uma porta, uma porta igual às outras. Experimento uma chave, outra e outra, sem sucesso. Em desespero, experimento o puxador, a porta está aberta, como que à espera de me receber. Entro.
Procuro-te, como faço todas as noites. E, como em todas as outras noites, tu não estás. Provavelmente, saíste para comprar cigarros...

Mais uma noite. Mais uma horrível dor de cabeça.
Nada que um Xanax e dois tragos de Whisky não resolvam.
Hoje, talvez durma descansado.
Quem sabe, sonho contigo? Quem sabe, talvez tenha um pesadelo?

Inevitável

"Foi inevitável", disseste-me tu, com um brilho doce nos olhos. Usavas aquele sorriso de quem pede desculpa por ter partido o pote das guloseimas e tenta esconder a ausência de arrependimento.
Da mesma forma e, inevitavelmente, o pote estava partido.

"Papá, foi sem querer. Por favor, não fiques chateado comigo. Vais deixar de gostar de mim?"
As tuas mãos ternurentas procuram o meu pescoço e as tuas pernas o meu colo. Sabes como me desarmar. Olhas-me nos olhos, como que a tentar ler a minha reacção, como que a tentar ver através deles e olhar no fundo do meu coração.

"Não, filha. Sabes que o Papá nunca irá deixar de gostar de ti", respondo-te.
Os teus olhos animam-se, as tuas mãos contraem-se à volta do meu pescoço e saltas do meu colo com o olhar de felicidade de quem se prepara para ir brincar.

Antes que saias da sala a correr, tenho ainda tempo para te dizer, numa voz aparentemente calma: "Mas, Luísa, esta semana estás de castigo."

Como resposta à perplexidade que leio nos teu olhos, acrescento apenas:
"Sabes, filha? Todas as acções têm reacções. E isso... é inevitável!"

domingo, 15 de março de 2009

Blog

És palavra. És imagem. És silêncio.
És verdade. És mentira. És ficção.
És drama. És romance. És comédia.
És sonho. És realidade. És ilusão.

És o preto e o branco misturados, és cinza colorido, em quadro de palavras vãs. És o grito em surdina do desejo, és espelho de sonhos e vontades, és riso, és lágrima... e nada és.

És não mais do que aquilo que eu te queira, não mais do que as regras que te imponha. Não tens vida, não tens desejo ou liberdade. Não iludes, não enganas, não escondes. Nada mostras, ainda assim, que eu não permita.

Passeias-te no interior da minha mente e perdes-te nos cenários que te pinto. Acreditas-te nas histórias que te invento e em cada uma das verdades que te minto.

Nada dás, nada aceitas, nada pedes.
E, em troca, nada recebes.

És tão somente um Blog. Não mais. Não menos.
Mas és, ainda assim, parte de mim...