segunda-feira, 27 de julho de 2009

CONTRAMÃO: Capítulo IV

Não teriam passado mais de quinze minutos e já o Jaguar de Carmen parava à minha porta. O calor, esse, não parecia sequer abrandar.

O percurso de vinte minutos até à casa de Miriam foi percorrido em pouco mais de dez. Pelo caminho, a reboque do mais elementar desrespeito pelas regras de trânsito, ficaram dois espelhos, três vermelhos, uma bicicleta e um número indeterminado de buzinadelas e impropérios, dirigidos alternadamente à nossa pessoa e à das senhoras nossas mães. Indiferente a tudo isso, Carmen dirigia como se não houvesse amanhã e, a meu ver, esteve por duas ou três vezes a escassos milímetros de o conseguir.

Mal parámos em frente ao número dezassete da Rua das Camélias e ainda antes de recuperar grande parte do meu sangue frio, ouvi a Carmen:
- Recoge tus huevos, Xavi. Quizás aún vas a necesitar de ellos.
Sorri-lhe com evidente desdém. Não, definitivamente, as mulheres não deviam conduzir.

De construção recente e aparência moderna, o edifício situava-se numa zona calma da cidade, em frente a um pequeno parque, onde o riso irritante das crianças coabitava alegremente com o ruído abafado da água e das folhas que se lhes varriam do caminho.

A imponente presença policial, tão estoicamente enraizada nos filmes, era aqui representada por uma única viatura da PSP, um Fiat Tempra a dever um bom par de anos ao abate, ao qual se encostava um gordo agente de bigode, que segurava o boné com a mão contrária àquela com que retirava a cera dos ouvidos.

O agente nem sequer fez tenções de se mexer quando passámos por ele e entrámos no prédio. Subimos a pé os três lances de escadas que nos separavam do nosso objectivo. Por indicação de Carmen, bati à porta que ostentava a letra ‘F’.
Um homem alto e corpulento abriu a porta, com uma violência tal que quase a arrancava das dobradiças.
- Tu? – gritou.

Merda.
Eu sabia que ia ser uma noite comprida.

domingo, 12 de julho de 2009

CONTRAMÃO: Capítulo III

Uma gota de suor cai no telemóvel quando me inclino para o ligar à corrente. Detesto calor. Preparo-me para tomar um banho, no preciso momento em que os acordes do Verão Azul se voltam a fazer ouvir. Se a música não fosse tão irritante deixava tocar.
- Boa tarde, fala Xavier.
- Hola, Xavi. Que tal?
Reconheço imediatamente a voz e a pronúncia.
- Carmen? Não conhecia este número...
- Es nuevo. Tuve que cambiar. Tu sabes como es... “uessos del ofício”…
- E então? Que me contas?
- Xavi, necesito que me hagas un gran favor...
- Sim, que se passa?
- Te acuerdas de Miriam?
Miriam. Morena, linda, um corpo de perder a cabeça...
- Vagamente – respondo.
- Seguro que te acuerdas. Pues la han encontrado hoy, en su apartamiento… muerta!
- Morta?? Como? Que… que aconteceu? – pergunto, sem conseguir disfarçar a surpresa.
- No lo sé. La policía cree que la han matado.
- Assassinada? De certeza? Não pode ser. Como??
- Xavi, no sé que más hacer. Las chicas están asustadas. Por favor, ayuda-me.
- Não posso, Carmen. É um assunto de polícia. Além do mais, há muito que já me deixei disso. E tu sabes bem porquê. Desculpa.
- Por favor, Xavi. Yo y las chicas nos quedaríamos más tranquilas. Por favor.
- E o que é que poderia fazer? Não dá. Não dá mesmo.
- Xavi, necesito recordar-te que me debes bien más que eso? Estás en tu casa? Te voy a buscar dentro de quince minutos, vale?
- Mas... – ainda balbuciei para o silêncio do outro lado da linha.

Merda.
Despejo o resto da garrafa de Black Label num copo, que bebo de um só trago. Vai ser uma noite comprida.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

CONTRAMÃO: Capítulo II

Quase vinte e três horas a acumular calor só podia dar nisto: uma das noites mais quentes do ano. O termómetro de rua marcava agora uns modestos vinte e oito graus. Nada que se comparasse com os trinta e seis de horas antes. À sombra dos candeeiros semi-ligados caminhavam desconhecidos a esforçarem-se por não o serem.

Do alto da sua árvore, com plena vista sobre o terceiro andar do número dezassete, um mocho observava a cena.
Uma mulher, na casa dos vinte, alta e atraente, abria a porta a um cavalheiro mais velho. Ultrapassada a cerimónia do beijo e a aparente normalidade em ser-se recebido por uma mulher em lingerie, o casal levou a conversa para o sofá. E a conversa deve ter sido bem agradável, pois ao fim de alguns minutos eram já as línguas que se falavam, os corpos que se tocavam e as vontades que se enlaçavam.

Meia hora mais tarde, adivinham-se juras de amor nas palavras levemente sussurradas ao ouvido e nos beijos que agora vestem o pescoço. Mesmo à distância, parece conseguir ouvir-se um “para sempre”.

Não era ainda meia-noite e já o corpo da mulher repousava, inerte, no chão da sala. Não era ainda meia-noite e já a porta do apartamento se fechava. Era já meia-noite e o homem caminhava, anónimo, por entre os desconhecidos que se imitavam.
Meia-noite e dois. O termómetro marcava ainda vinte e oito graus.