domingo, 26 de abril de 2009

Xadrez

- Vem, senta-te comigo, Teresa.
- Porquê? - perguntas, curiosa.
- Já vês. Anda, confia em mim - respondo-te.

É este o nosso campo de batalha.
O tabuleiro está montado, as peças alinhadas na perfeição.
Sorrio-te.

Começo por te apresentar as peças. Permito que saboreies a sua cor, no preto e branco de que tanto gostas. Insisto para que lhes pegues e lhes dês vida com o teu toque.
Observo-te, deliciado, enquanto estudas cada peça como se a tua vida dependesse disso. Como adivinhaste?

Começo a explicar-te regras e movimentos, numa estranha coreografia de vontades reprimidas. Vejo-te franzir o sobrolho quando te explico ser o Rei a peça mais importante do jogo - sem ele não há jogo. Vejo-te sorrir quando te confesso, a contragosto, que a Rainha é a peça mais forte do jogo - incomparavelmente mais forte do que o Rei a que serve. Explico-te como me podes comer 'en passant', como me podes saltar com os teus cavalos e prender com as tuas torres.

Ouves atentamente tudo o que tenho para te dizer e sondas tudo o que não te digo, com esses teus olhos, guardiões de todos os segredos do Universo.

- Gosto que me ensines - dizes, numa voz abafada, ao mesmo tempo que me sopras o beijo que não me dás.
- Sim? Ainda bem... Começamos?

e2-e4: Abro com peão de Rei. Abertura clássica.
e7-e5: Imitas-me, à falta de melhor ideia.
Cb1-a3: Saio com um dos cavalos. Sempre gostei dos cavalos.
Bf8-c5: Olhas para a televisão enquanto jogas para C5. Sempre adoraste esse anúncio da Citroën.
Ca3-b5: Avanço com o meu cavalo. Já te disse o quanto gosto dos cavalos?
Dd8-f6: Já queres mexer a Rainha? Tão cedo, no início do jogo? Tu é que sabes. Sorrio.
Cg1-e2: Continuo a abrir os cavalos. É sempre uma boa estratégia.
Df6xf2++: Sorris-me...

sábado, 25 de abril de 2009

Lições de Vida

"Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida"

Fernando Pessoa
in 'Livro do Desassossego'

domingo, 19 de abril de 2009

Olhos

Depois de tanto corta e cose e remenda e corta e volta a coser, já vejo o mundo com outros olhos.

Pena que o continuo a ver desfocado...
Será que não é dos meus olhos?!?

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Regras

Estou farto das tuas regras!

Estou farto das regras de conduta, regras de etiqueta, regras de educação, regras de trânsito, regras de mercado, regras do jogo, regras gramaticais, regras ortográficas, regras de bom senso, regras, regras...
Estou farto de regras. Ponto.

As regras foram criadas para serem quebradas e todos sabemos que há um gostinho especial em contorná-las. E eu, por regra, orgulho-me de ser a excepção à regra. Esta, é a excepção que confirma a regra.

Hoje acordei com uma vontade desregrada de não me regrar.
Acordei com vontade de não baixar a tampa da sanita, com vontade de não te desejar "Bom Dia" e não te agradecer por me passares o sal.
Hoje passo vermelhos, sentidos proibidos e estaciono-me em ti, desrespeitando todos os sinais.
Hoje escrevo-te em letras maiúsculas, sem pontuação e sem tracinho se. Hoje não há ses. Hoje não me apetece parar para esconder a subtil indiferença entre um "toca-mos" e um "tocamos".
Hoje não é dia de estender o dedo mindinho ao beber o chá, perdão, a infusão. Hoje é dia de te estender um outro dedo, mal me ameaças com o teu olhar reprovador.
Hoje não me apetece recuar duas casas, só porque as regras assim o ditam. Apetece-me voltar a atirar os dados e exclamar, vestindo o meu melhor sorriso irónico: "Que sorte, um duplo de seis" - enquanto recolho descaradamente os dados que, em conjunto, somam três.

Hoje é dia de dizer asneiras, desligar telefones na cara e cuspir para o chão. É dia de faltar ao respeito, buzinar sem motivo e mandar calar a chata da vizinha. É dia de levar a faca à boca, comer com as mãos e mastigar de boca aberta.
Hoje não é dia para agradecer ou pedir desculpa.

Ainda assim, não é um dia sem regras.
É, simplesmente, um dia com novas regras. Desta feita, as minhas regras.
E, em boa verdade, só há uma regra: Sou eu quem dita as regras e as regras podem ser alteradas a qualquer momento. Simples, não?

It's a whole new game.
Now I make the rules as I go along... and I'm loving every second of it!

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Caos

Serpenteio naturalmente por entre o caos que me rodeia. Nem reparo. Já não o estranho, já não me incomoda. Acho, aliás, que aprendi a gostar dele...

Gosto do som dos jornais que se rasgam sob os meus pés, da visão dos livros que se amontoam em massas disformes de nada. Gosto de tropeçar em CDs e afastar com as mãos a roupa interior pendurada no candeeiro. Gosto.

Todos os dias descubro algo novo. Ontem foi aquele álbum de fotografias em que eu, de enorme bigode e calças à boca-de-sino em padrão xadrez, parecia querer dominar o mundo. Que ridículo que eu era. E tu? Com aquele cabelo armado, dentes tortos e óculos de fundo de garrafa? Já quase não te recordava, pré-metamorfose.

Meu Deus... lembro-me vagamente dos dias em que ainda havia lugar para me sentar no sofá. O espaço foi agora gentilmente cedido a hordas de revistas amareladas pelo sol, que convivem alegremente com pratos e copos sujos, toalhas, lençóis, sapatos rotos e até a minha velha máquina de escrever. Estou bem melhor assim. Era tão desconfortável, o sofá.

Esta é a parte complicada. Especialmente de noite, como agora. A lâmpada fundida, que jurei substituir há dois anos, nega-me a visão e é com frequência que derrubo, com grande estrondo, as recordações que aqui amontoo. Por muito cuidado que tenha, há sempre um vaso morto que cai e espalha a sua terra pela alcatifa bolorenta. Invariavelmente, como de costume, não me apetece limpar. "Talvez amanhã" - penso. Recordo-me de ter pensado isto ontem.

O quarto parece um cenário de guerra. A roupa suja esconde os defeitos do chão, que agora só se imagina. Os pedaços despidos, por entre os papéis amarrotados e as camisas usadas, são as trincheiras onde me escondo. As latas vazias de Coca-Cola, as minhas armas de arremesso.

A um canto, imaculada, impecavelmente limpa, a minha cama, o meu quartel-general. Em cima da mesinha de cabeceira, aquele livro, filho do caos, em que ontem tropecei e há muito sonhava ler.

Sim, definitivamente... gosto!

terça-feira, 7 de abril de 2009

Dias Maus

A vida é demasiado curta para ser desperdiçada com dias maus...

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Navegar

O Sol, pintado em tons de toranja azulado, deita-se agora na linha do horizonte.
Anoitece lentamente, ao ritmo compassado do meu tempo, sem tempo. O azul escuro domina agora os meus olhos, que tentam, em vão, contar as estrelas que rasgam o céu. Estão aqui tão perto que acredito conseguir agarrá-las e escalar, uma a uma, sem tempo, até alcançar a Lua onde me escondo.

Hoje é dia de um só sentido. Hoje é dia de visão.
O pôr-do-sol mais bonito que alguma vez vi foi rendido por um manto de estrelas fantástico, que em nada lhe inveja a beleza. A água, onde se reflecte o meu mundo, é límpida e clara como o céu que nela se espelha. Mergulho uma mão e admiro os círculos perfeitos que nascem do meu contacto.
Todos os dias deviam ser assim. Serenos. Perfeitos. Só meus.

Levanto a âncora que me prende, solto as amarras e deixo-me ir.
Desligo o GPS. Hoje é dia de me guiar pelas estrelas. É dia de me deixar guiar. É dia de me deixar ir à deriva. É dia de saborear a viagem. É dia de largar o meu porto.

Hoje é dia de navegar sem destino.
Amanhã, se regressar, conto-vos como foi...