sábado, 29 de agosto de 2009

Berlinde

Brinco-te com a ponta dos dedos.
Enrolo-te repetidamente entre o polegar e o indicador. Aperto-te contra a palma da minha mão, para não te deixar cair, para não te perder, de tão preciosa que me é a ilusão da tua posse.

Procuro-me na tua esfera perfeita, onde aprisionas a mais crua das verdades. A tua. Não me encontro, não me espanto. Não há em ti lugar para nada mais que a tua chama azul-esverdeada, a par dos reflexos com que decides brindar-me enquanto insisto em polir-te com o calor húmido da minha expiração.

Sinto agora o teu peso na minha mão e equilibro-te no polegar enquanto antecipo, de olhos cerrados, a derradeira das jogadas. Imagino-te um xeque-mate em versão rolante, com direito a aplausos, foguetes e serpentinas. Tudo a que tens direito. Ou quase tudo...
Mas não, hoje não.
Hoje não me apetece atirar-te para longe, onde teimosamente te deixas ficar, à espera que eu regresse a ti.
Hoje não. Isso cansa.

Não. Estou farto deste jogo.
Guardo-te no meu bolso direito, juntamente com os outros berlindes, a pastilha elástica semi-usada, os dois clipes e os cromos repetidos.

Afinal, acho que vou jogar às cartas...

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

CONTRAMÃO: Capítulo V

- Então, Silva? Boa noite também para ti – cumprimentei, ironicamente.
- É Tenente Marques Silva, para ti – respondeu-me, entre dentes.
- Tenente? Muito bem. Vejo que continuas a lamber botas... ou agora também já lambes outras coisas??
- Seu filho da...
Saltei para o lado mesmo a tempo de evitar a mão que se me dirigia e que, desconfio, não me vinha cumprimentar. Conseguiu arrancar-me o cigarro da boca. O sorriso, esse, já ninguém mo arrancava. Não fora a pronta intervenção da Carmen e ainda me teria divertido mais um bocado.

Eu e o Silva já nos conhecíamos há alguns anos, dos meus tempos na PJ, embora não se pudesse dizer propriamente que fossemos amigos. Não sei se pelos casos que ele perdeu para mim, se pelo facto de ter desconfiado que eu andava a comer a mulher dele, o certo é que o Silva não ia com a minha cara. E, confesso, isso nem me chateava por aí além. Para ser honesto, até me dava um certo gozo. Nesse aspecto, ele era muito parecido com a mulher.

- O que é que estás aqui a fazer? – perguntou bruscamente o Silva.
- Se queres que te diga, nem eu sei muito bem – respondi, olhando para Carmen.
Esta pediu-me para aguardar um minuto e entrou em casa com o Silva. Não faço a mínima ideia do que ela lhe terá dito mas, dois minutos depois, o Silva era o meu novo melhor amigo.
E eu, que até gosto de fazer amigos, resolvi alinhar no jogo.

- Xavi está aquí para hacerme un favor, ayudándome a entender lo que pasó e para defender a mis chicas. Le vas a ayudar con todo lo que necesite, verdad? – disse Carmen, dirigindo-se ao Silva.
- Claro. Será um prazer – respondeu este, sem esconder o tom irónico.

Pedi-lhe que me levasse ao local onde o corpo de Miriam fora encontrado. Confesso que contava com um choque maior.
A cena dir-se-ia de tudo menos de um homicídio. O corpo encontrava-se deitado no chão, tranquilo, pacífico, quase como se estivesse a dormir. Não soubera eu que Miriam estava morte e quase esperava que ela se levantasse a qualquer momento, rindo-se da piada que acabara de nos pregar. Ainda assim, algo me diz que dificilmente ela se voltaria a levantar...

Comecei então a observar o corpo com mais atenção. Miriam estava deitada de barriga para cima, de pernas perfeitamente esticadas e braços cruzados em cima do peito. Por baixo destes, seguros por ambas as mãos, um livro e um malmequer. Não há sinais visíveis de violência. Não há sangue, hematomas, arranhões, nada. De facto, agora que reparo bem, não há sequer um cabelo fora do sítio. No chão, entre o corpo e o sofá, algumas pétalas arrancadas ao malmequer.

- E então? Que sabemos até agora? – pergunto ao Silva.
- Pouco. Muito pouco. O corpo foi encontrado esta manhã pela empregada de limpeza, que tem uma cópia da chave e vinha limpar o apartamento. Já a interrogamos e ela afirma não saber de nada. Aparentemente, vem limpar o apartamento duas vezes por semana, às segundas e quintas de manhã. A causa da morte está ainda por determinar, embora não haja sinais visíveis de violência. Pelo menos sabemos que não foi morta a tiro – disse o Silva, soltando uma gargalhada.

Perante a nossa ausência de reacção, continuou:
- O médico legista aponta para que a morte tenha ocorrido entre doze a vinte e quatro horas atrás. Já falámos com alguns dos vizinhos, que afirmam não ter visto ou ouvido nada fora do comum.
- E o livro? – perguntei.
- Ia mesmo agora tratar disso.

Observei o Silva enquanto este pegava no livro e o desfolhava cuidadosamente. Tratava-se de um Guia Viagem de Londres, banalíssimo, daqueles que vêm de oferta com a Visão. Não havia qualquer anotação ou inscrição no mesmo. Parecia tratar-se de um exemplar comum, saído directamente das bancas.

- Que haces? No vas a destruir las huellas dactilares y el ADN? – pregunta Carmen.
Não consegui deixar de olhar para o Silva e sorrir, enquanto respondia:
- Andas a ver muito CSI, Carmen. Estamos em Portugal. Mesmo que conseguíssemos recolher as impressões digitais ou o ADN, não temos bases de dados com que as comparar. Tanto podiam ser minhas, como tuas, como da própria Miriam, que nem tínhamos forma de as distinguir. Com um bocado de sorte, arranjam-se uns cães, como no caso Maddie...
- Entonces y ahora?
- Agora vocês vão deixar-me trabalhar em paz, que eu tenho mais que fazer. A visita guiada acabou. Está na hora de voltarem para a escolinha – disse o Silva, apontando para a porta.
- Vamos, Carmen. Até que seja feita a autópsia, não podemos adiantar grande coisa – disse.

Ao sair de casa volto-me para trás e digo ainda:
- Ah, Silva, só mais uma coisa...
- Sim?
- Manda cumprimentos meus à tua mulher...

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Castelo de Cartas

Rei de Paus. Mesmo aqui, encostado ao Valete de Espadas, ao lado esquerdo da minha alma.
Com a mão precisa, pego agora no Duque de Ouros, tripla parte da Sena a que se encosta, que amontoo nesta margem ao Sul de mim.
Perdi já a conta aos 204 baralhos que investi neste Castelo e aos dias que se empilham em horas de paciências fingidas.

Empunho o Terno de Espadas no preciso momento em que irrompes pela sala dentro e bates a porta atrás de ti. Toda tu, impetuosidade. Toda tu, urgência vestida de vento, premência avassaladora, tornado, ciclone, turbilhão de ti.

Serpenteias por entre as cartas que te caem aos pés e sorris-te, indiferente ao sorriso que te escondo amargo, oculto na doçura do meu olhar.
As cartas, essas, caem ainda.

Engraçado. Reparo agora que a Dama de Copas se mantém de pé, debruçada sobre o seu Joker.
É melhor apagar a luz. Não queremos arriscar acordá-los...