sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Procura

Tropeço na linha invisível que me delimita a realidade e deixo-me cair livremente no mundo de fantasia em que me procuro. As nuvens e as árvores cor-de-rosa escondem o sol azul-turquesa. À minha frente, por entre as sombras de uma lua alaranjada, Alice e a Dama de Copas saltam à corda. Ao fundo, muito lá ao fundo, um pouco além da minha imaginação, as minhas memórias, os meus sonhos, a minha vida. Ali, mesmo ali, um tudo nada à esquerda de onde nunca os guardei.

Chamo-me, com a voz rouca que ecoa no silêncio que me responde. Não espero outra resposta que não o som arrítmico dos meus passos lentos e cansados. Ainda assim, tento ouvir-me. Ainda assim, chamo por mim.
Não me ouço. Não me admiro.

A noite beija-me a pele com o prazer solitário da eternidade. Uma gota de chuva, uma única gota de chuva, desprende-se do meu rosto e pinta o chão em tons de vermelho-fogo. Procuro, no contraste das cores vivas, uma pista que me leve até mim. Nada encontro, para além de uma nova linha, esta visível, que demarca os contornos da realidade.

Transponho-a e deixo-me cair na cama, subjugado pelo cansaço.
Hoje vou dormir. Talvez amanhã me encontre...

1 comentário:

  1. Em todo o momento de actividade mental acontece em nós um duplo fenómeno de percepção: ao mesmo tempo que tempos consciência de um estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção.

    Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E - mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol nos meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.

    Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva - e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma - é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que «na ausência da amada o sol não brilha», e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Têm de ser duas paisagens, mas pode ser - não se querendo admitir que um estado de alma é uma paisagem - que se queira simplesmente interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior. [...]

    Fernando Pessoa, 'Cancioneiro'

    ResponderEliminar