"Sorvo as tuas palavras até à última gota, até que o som da palha a aspirar o vazio, corte o silêncio em que me deixaste.
Não tenho voz. Não consigo dizer-te a falta que não me fazes, ou talvez faças. Tento, com uma mímica de gestos incompreensíveis, demonstrar-te a forma como já não te sinto. Nos meus olhos, lê-se o desespero do vazio, o desalento de um nada acumulado em finas camadas de memórias perdidas.
Na pele, marcado a ferros, um nome que já mal distingo, num corpo que dizem meu. Nos lábios, estes que um dia quiseste, esfuma-se agora um último cigarro, a par com as palavras que nunca te disse. Nas mãos, fortes, seguras, trago ainda um pouco de mim. Carrego-me para todo o lado, numa linha invisível que um dia, cigana, tentaste ler."
- Que melodrama. Mas o que é isso? - interrompes-me.
- Então, não foi o que pediste? - respondo-te, perplexo.
- Quero mais acção, mais vida, mais, mais... tu sabes.
- Não, não sei.
- Pois, já deu para ver... não entendes nada de amor...
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"Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia
ResponderEliminardepois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha
intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas."
Herberto Helder